04 de junho de 2012 - O Estado de
S.Paulo
Fábio Tofic Simantob
A história da advocacia criminal é a
história da perseguição aos advogados e das tentativas de acovardar a
profissão. É célebre a frase com que Nicolas Berryer costumava iniciar suas
defesas no tribunal do terror revolucionário: "Trago à convenção a verdade
e a minha cabeça; poderão dispor da segunda, mas só depois de ouvir a
primeira".
Malfalado, achincalhado e colocado na
mesma vala comum de seus clientes, vítima de agressões em razão do mero ofício,
o advogado foi dos poucos que, ao longo da História, saíram em defesa dos
oprimidos e perseguidos, não importando a classe social a que pertencessem.
Quando a opinião pública se voltou
contra os judeus na França, foi um advogado - sem falar em Émile Zola com o J'accuse -
que saiu em defesa de Alfred Dreyfus para provar que o borderô usado contra ele
era falso. Graças à atuação de advogados, muitas vezes sem ganhar nem um
tostão, milhares de presos políticos escaparam das masmorras brasileiras
durante a ditadura militar, mesmo correndo o risco de serem confundidos com a
militância política de seus clientes.
Quando as ideologias tomavam conta do
mundo, Rui Barbosa respondeu a uma consulta formulada pelo amigo Evaristo de
Moraes. Numa carta intitulada O dever do advogado aconselhou
o famoso rábula, seu correligionário, a aceitar a defesa criminal de Mendes
Tavares, então antagonista do civilismo liderado por Rui, por considerar que o
múnus do advogado criminal está acima das disputas políticas.
Nessa famosa missiva, o mestre Rui
Barbosa assim dizia ao amigo Evaristo de Moraes: "Recuar ante a
objeção de que o acusado é 'indigno de defesa' era o que não poderia fazer o
meu douto colega, sem ignorar as leis do seu ofício, ou traí-las. Tratando-se
de um acusado em matéria criminal, não há causa em absoluto indigna de
defesa. Ainda quando o crime seja de todos o mais nefando, resta verificar
a prova; e ainda quando a prova inicial seja decisiva, falta, não só apurá-la
no cadinho dos debates judiciais, senão também vigiar pela regularidade estrita
do processo nas suas mínimas formas".
Partidário da mesma opinião, após o levante comunista de 1935, Sobral Pinto, conhecido por suas convicções católicas e anticomunistas, aceitou defender Luiz Carlos Prestes, inimigo número um de Getúlio Vargas.
Partidário da mesma opinião, após o levante comunista de 1935, Sobral Pinto, conhecido por suas convicções católicas e anticomunistas, aceitou defender Luiz Carlos Prestes, inimigo número um de Getúlio Vargas.
Bem pagos ou não, os advogados nunca
arredaram pé de seu mister de sair na defesa intransigente dos direitos do réu.
Basta, porém, a acusação contra determinado réu acender uma pequena fagulha de
ódio na opinião pública para que imediatamente os inimigos das liberdades
voltem a incendiar a imagem do advogado criminal.
A isso se prestou, na semana passada,
Manoel Pestana, procurador da República em Porto Alegre, que, num ato de populismo
que lembra o caudilhismo dos pampas, buscou torpedear seus adversários de
tribuna, os advogados, e especificamente o advogado de Cachoeira, Márcio Thomaz
Bastos, demonstrando todo o rancor e o ressentimento que ainda persiste na alma
de alguns figadais inimigos do Estado Democrático de Direito. A proposta
concreta do procurador Pestana é a seguinte: quando o advogado cobra honorários
de alguém acusado de enriquecer ilicitamente, os valores recebidos são ilícitos
e, portanto, configuram receptação culposa. Receptação culposa é a conduta,
prevista no artigo 180 do Código Penal, de "adquirir ou receber
coisa que, por sua natureza ou pela desproporção entre o valor e o preço, ou
pela condição de quem a oferece, deve presumir-se obtida por meio
criminoso".
Equiparar os honorários do advogado ao crime de receptação culposa é o mesmo que igualar espelho de tomada de luz a focinho de porco. Somente a olhos tacanhos, míopes e estrábicos, ambos poderão ser colocados na mesma vala. Como técnico do Direito, Pestana sabe ou deveria saber disso; mas como instrumento de sedição, a estratégia funciona bem.
Equiparar os honorários do advogado ao crime de receptação culposa é o mesmo que igualar espelho de tomada de luz a focinho de porco. Somente a olhos tacanhos, míopes e estrábicos, ambos poderão ser colocados na mesma vala. Como técnico do Direito, Pestana sabe ou deveria saber disso; mas como instrumento de sedição, a estratégia funciona bem.
A proposta é tão demagógica e sediciosa
que, se o procurador quisesse mesmo levá-la a ferro e fogo, deveria mandar
incinerar todo o dinheiro que o grupo de Cachoeira transferiu para os cofres
públicos nos últimos anos, por meio do pagamento de taxas, impostos, etc.,
valores usados para pagar quiçá o próprio salário do procurador ou de seus
colegas de Ministério Público.
Bazófia! A proposta esconde objetivo
claro: acovardar e desmoralizar a advocacia e fulminar, assim, o sacrossanto
direito de defesa dos acusados! Se Cachoeira, pivô do motim que o procurador
insufla contra os advogados, de fato cometeu os crimes pelos quais responde na
Justiça, uma coisa é certa: a culpa disso não é do advogado dele! Por trás da
panfletária ode à criminalização da advocacia escondem-se o vetusto desrespeito
à ordem jurídica estabelecida, a antipatia pelo direito de defesa, o espírito
punitivista totalitário e avesso aos direitos e garantias individuais do homem.
Se quisermos falar de honorários,
teremos de voltar nossos olhos para outras mazelas da Justiça, como as
condições degradantes da esmagadora maioria dos advogados humildes deste país,
que se acotovelam nas apinhadas salas da OAB instaladas nos próprios Fóruns,
causídicos que recebem salários de fome para defender seus clientes. Pior que
isso, por uma razão que até hoje ninguém explica, os salários pagos a
acusadores públicos são substancialmente maiores do que os pagos aos defensores
públicos, um sintoma bastante evidente do desprezo pelo direito de defesa neste
país.
Advogados e membros do Ministério
Público não são inimigos, são apenas adversários processuais num caso concreto.
Irmanam-se, no entanto, num mister mais nobre: o engrandecimento da Justiça.
Ainda mais por esse motivo, a iniciativa de um procurador da República de
atacar o advogado em razão apenas da causa que ele defende cria antagonismos
indesejáveis entre as duas carreiras - a advocacia e o Ministério Público -, além
de não servir a nenhum propósito útil de aperfeiçoamento das instituições
democráticas.
* ADVOGADO CRIMINALISTA
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